Não Sonho Mais

Chico Buarque

Hoje eu sonhei contigo

Tanta desdita, amor

Nem te digo

Tanto castigo

Que eu tava aflita de te contar



Foi um sonho medonho

Desses que às vezes a gente sonha

E baba na fronha

E se urina toda

E quer sufocar



Meu amor

Vi chegando um trem de candango

Formando um bando

Mas que era um bando de orangotango

Pra te pegar



Vinha nego humilhado

Vinha morto-vivo

Vinha flagelado

De tudo que é lado

Vinha um bom motivo

Pra te esfolar



Quanto mais tu corria

Mais tu ficava

Mais atolava

Mais te sujava

Amor, tu fedia

Empestava o ar



Tu, que foi tão valente

Chorou pra gente

Pediu piedade

E olha que maldade

Me deu vontade

De gargalhar



Ao pé da ribanceira

Acabou-se a liça

E escarrei-te inteira

A tua carniça

E tinha justiça

Nesse escarrar



Te rasgamo a carcaça

Descemo a ripa

Viramo as tripa

Comemo os ovo

Ai, e aquele povo

Pôs-se a cantar



Foi um sonho medonho

Desses que às vezes a gente sonha

E baba na fronha

E se urina toda

E já não tem paz



Pois eu sonhei contigo

E caí da cama

Ai, amor, não briga

Ai, não me castiga

Ai, diz que me ama

E eu não sonho mais