Fado Tropical

Chico Buarque

Oh, musa do meu fado

Oh, minha mãe gentil

Te deixo consternado

No primeiro abril

Mas não sê tão ingrata

Não esquece quem te amou

E em tua densa mata

Se perdeu e se encontrou

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal



"Sabe, no fundo eu sou um sentimental

Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo...(além da

sífilis, é claro)*

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar

Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."



Com avencas na caatinga

Alecrins no canavial

Licores na moringa

Um vinho tropical

E a linda mulata

Com rendas do Alentejo

De quem numa bravata

Arrebato um beijo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal



"Meu coração tem um sereno jeito

E as minhas mãos o golpe duro e presto

De tal maneira que, depois de feito

Desencontrado, eu mesmo me contesto



Se trago as mãos distantes do meu peito

é que há distância entre intenção e gesto

E se o meu coração nas mãos estreito

Me assombra a súbita impressão de incesto



Quando me encontro no calor da luta

Ostento a aguda empunhadora à proa

Mas o meu peito se desabotoa



E se a sentença se anuncia bruta

Mais que depressa a mão cega executa

Pois que senão o coração perdoa..."



Guitarras e sanfonas

Jasmins, coqueiros, fontes

Sardinhas, mandioca

Num suave azulejo

E o rio Amazonas

Que corre Trás-os-Montes

E numa pororoca

Deságua no Tejo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal

Ainda vai tornar-se um império colonial



* trecho original, vetado pela censura