O Estrangeiro

Caetano Veloso

O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara

O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela

A Baía de Guanabara

O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara

Pareceu-lhe uma boca banguela

E eu, menos a conhecera, mais a amara?

Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela

O que é uma coisa bela?

O amor é cego

Ray Charles é cego

Stevie Wonder é cego

E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?

Uma arara?

Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara

Em que se passara passa passará um raro pesadelo

Que aqui começo a contruir sempre buscando o belo e o Amaro

Eu não sonhei:

A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia branca e óleo diesel

Sob meus tênis

E o Pão de Açúcar menos óbvio possível

à minha frente

Um Pão de Açúcar com umas arestas insuspeitadas

à áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura

Do branco das areias e das espumas

Que era tudo quanto havia então de aurora

Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas

E uma menina ainda adolescente e muito linda

Não olho pra trás mas sei de tudo

Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo

Mas eu não desejo ver o terno negro do velho

Nem os dentes quase-não-púrpura da menina

(Pense Seurat e pense impressionista

Essa coisa da luz nos brancos dente e onda

Mas não pense surrealista que é outra onda)

E ouço as vozes

Os dois me dizem

Num duplo som

Como que sampleados num Sinclavier:

"é chegada a hora da reeducação de alguém

Do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém

O certo é louco tomar eletrochoque

O certo é saber que o certo é certo

O macho adulto branco sempre no comando

E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo

Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita

Riscar os índios, nada esperar dos pretos"

E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento

Sigo mais sozinho caminhando contar o vento

E entendo o centro d